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Quando um acordo de risco sacado muda “substancialmente” os termos e condições de um passivo para ser reclassificado como dívida

Quando um acordo de risco sacado muda “substancialmente” os termos e condições de um passivo para ser reclassificado como dívida
23/03/2023
Patrick Matos

Arranjos contratuais celebrados junto a instituições financeiras como os de risco sacado ganharam popularidade junto às entidades a partir da metade da última década quando suas estruturações passaram a se mover de forma mais próxima aos moldes atuais e a busca por financiamento mais vantajoso tornou-se indispensável para manutenção das operações em um ambiente econômico desafiador.

Desde então, este arranjo, onde comumente, uma instituição financeira concorda em pagar valores que uma entidade deve aos seus fornecedores em contrapartida ao recebimento em uma data posterior (ou, em casos, na mesma data) passou também a ser alvo de maior escrutínio e discussão junto a normatizadores e reguladores que buscavam direcionamento contábil apropriado na falta de detalhamento específico nas normas para este tipo de transação. Mais recentemente, em vista dos acontecimentos reportados envolvendo a Lojas Americanas S.A., o público em geral passou também a buscar informações sobre estes tipos de arranjo e quais implicações contábeis deveriam ser reportadas pelas entidades em suas demonstrações financeiras.

Dentre estes reguladores e normatizadores, a CVM no Brasil e o IASB (assim como seu órgão interpretativo, o Comitê de Interpretações do IFRS, ou IFRIC), discutiram tais transações em maior detalhe nos últimos anos, eventualmente publicando documentos de caráter educativo e/ou interpretativo. Em geral, as principais preocupações que têm sido colocadas em discussão é se (i) com base na natureza e nas características dessas transações estruturadas, a entidade deve apresentar os passivos a pagar por bens ou serviços recebidos aos quais se referem os acordos de risco sacado como contas a pagar a fornecedores (ou seja, mantendo-se a apresentação inicial e original do passivo) ou como dívida bancária (empréstimos e financiamentos); e (ii) os reflexos na das operações na demonstração dos fluxos de caixa devem se manter em atividades operacionais ou, de outra forma, serem reclassificados para atividades de financiamento.

Essa discussão possui alguns panos de fundo, muitos dos quais já discutidos extensivamente nas normas IFRS, mas aos quais cabem diferentes interpretações. A simples alteração na contraparte que vai receber o pagamento (por exemplo, um título pago ao banco automaticamente tornar-se dívida) não leva, segundos as normas IFRS atuais a uma decisão binária de que há mudança significativa, muito embora seja este um raciocínio intuitivo.

A Estrutura Conceitual das IFRS explica que como um fator de representação fidedigna, “coisas similares devem parecer similares e coisas diferentes devem parecer diferentes” e que “a comparabilidade de informações financeiras não é aumentada fazendo-se que coisas diferentes pareçam similares, tanto quanto se fazendo que coisas similares pareçam diferentes”. Ou seja, em que grau um passivo financeiro no escopo do IFRS 9 (CPC 48, norma que trata de instrumentos financeiros), quer seja ele um contas a pagar comercial ou um passivo de financiamento, é alterado pela existência de um programa de risco sacado a ponto de ensejar uma reclassificação em separado?

Muito embora seja verdade que ambos os passivos (de financiamento ou contas a pagar comercial) sejam tratados como instrumentos financeiros análogos pela IFRS 9, é bom relembrar que a IAS 1 (CPC 26 (R2), que trata da apresentação das demonstrações financeiras) prevê diferenças qualitativas fundamentais entre estes itens. O parágrafo 54(k), por exemplo, explicita o requerimento de apresentação de “contas a pagar comerciais e outras” separadamente de outros passivos financeiros, na sua avaliação de que esses itens são suficientemente diferentes em natureza ou função de outros passivos financeiros.

Nota-se que ao se referir a “contas a pagar comerciais e outras”, a norma citada não traz consigo uma definição deste termo. Porém em outra norma IFRS, no parágrafo 11(a) da IAS 37 (CPC 25, norma que trata de provisões, passivos contingentes e ativos contingentes), o IASB esclarece que contas a pagar são “passivos a pagar por conta de bens ou serviços fornecidos ou recebidos e que tenham sido faturados ou formalmente acordados com o fornecedor”. Embora não esteja refletida nessa definição o termo “comerciais”, não interpreto que haja qualquer diferença relevante entre o que pretende especificar a IAS 1 e a IAS 37 nesse contexto.

Em sequência, aproveitando-se as definições anteriores para esclarecer a melhor leitura deste termo, podemos também considerar o que define o parágrafo 70 do IAS 1, referindo se a alguns passivos circulantes, como contas a pagar a fornecedores, como itens que fazem parte do capital de giro utilizado no ciclo operacional normal da entidade.

Para não deixar “outras” contas a pagar comerciais incluídas no requerimento da IAS 1 de fora, podemos também considerar que, embora as IFRS atuais não contenham uma descrição de “outras contas a pagar”, podemos observar o requerimento da IAS 1 de que a entidade apresente separadamente cada classe material de itens semelhantes e de natureza ou função diferente, a menos que imateriais (parágrafo 29 da IAS 1). Pelas definições aqui discutidas, e pelo que rege o parágrafo 54 mencionado acima, me parece uma indicação clara de que “outras contas a pagar” têm natureza ou função similar à de saldos de contas a pagar a fornecedores, de forma que estes poderiam ser vistos como itens de natureza única.

Por esse caminho, parece razoável considerar um passivo financeiro como um saldo de “contas a pagar comerciais e outras” na medida em que este (a) represente um passivo a pagar por bens ou serviços; (b) seja faturado ou formalmente acordado com o fornecedor; e (c) faça parte do capital de giro utilizado no ciclo operacional normal da entidade. Em linha semelhante, o IFRIC concluiu em sua agenda decision que, aplicando o IAS 1, a entidade apresenta (a) outras contas a pagar juntamente com contas a pagar a fornecedores apenas quando essas outras contas a pagar têm uma natureza e função semelhantes às contas a pagar a fornecedores (por exemplo, quando outras contas a pagar fazem parte do capital de giro utilizado no ciclo operacional normal da entidade); e (b) passivos que fazem parte de um acordo de risco sacado separadamente quando o tamanho, natureza ou função desses passivos torna a apresentação separada relevante para um entendimento da posição financeira da entidade.

Concluir se o passivo deve ser tratado como dívida ou conta as pagar a fornecedores na base destes dois aspectos mencionados pelo IFRIC envolve grau significativo de julgamento. Ao aplicar tal julgamento sob os aspectos mencionados acima deve se considerar também, em especial (a) se garantia adicional é fornecida como parte do acordo que não seria fornecida sem o acordo; e (b) se os termos dos passivos que fazem parte do acordo são substancialmente diferentes dos termos das contas a pagar da entidade que não fazem parte do acordo.

Nesse sentido pode-se rapidamente concluir em relação à existência de garantia, uma vez que esse fator é binário. Chega-se então ao maior julgamento incluído na análise, se termos e condições acordados no programa são “substancialmente diferentes”, principalmente na medida em que “substancialmente diferente” não é um termo definido em normas IFRS. Nota-se ainda que ao considerar o adjetivo “substancialmente” antes de tratar das diferenças, o IASB e IFRIC tornam explícito que o simples fato de haver mudança em termos e condições de um passivo não levam à sua reclassificação para outra linha, automaticamente (ou seja, somente quando essa mudança for “substancial”) e seguem por uma linha já bem estabelecida em outras normas quando buscam tratar de fatores de probabilidade cujo atendimento não é tido como simples (como “altamente provável” no IFRS 15 (CPC 47, norma que trata de reconhecimento de receitas) ou “virtualmente certo” no IAS 37, por exemplo).

Outras discussões presentes no âmbito das IFRS podem ser observadas para apoiar nessa avaliação. Dentro dos próprios arquivos disponibilizados pelo IASB e IFRIC (incluindo áudios de reuniões), há a conclusão expressa por diversos membros de que nenhum tratamento contábil específico pode ser determinado para todos os tipos de acordos de risco sacado (ou seja, não seriam todas estas transações automaticamente consideradas operações de financiamento) e que se deve levar em consideração as características de tal arranjo à luz da IAS 1, posição não muito diferente de grande parte dos respondentes do projeto, incluindo grandes empresas, auditorias de renome, a CVM e o CPC no Brasil. A CVM, por exemplo, em seu posicionamento comenta que “todos fatos e circunstâncias relevantes devem ser considerados ao analisar se o passivo deve ser desreconhecido e apresentado separadamente na posição patrimonial e financeira”.

Daí a grande importância de a entidade que reporta avaliar na base dos requerimentos da IAS 1, em especial no que se refere, além dos itens já dispostos acima, o parágrafo 15 da norma, que estabelece que “as demonstrações contábeis devem representar apropriadamente a posição financeira e patrimonial, o desempenho e os fluxos de caixa da entidade. Para apresentação adequada, é necessária a representação fidedigna dos efeitos das transações, outros eventos e condições de acordo com as definições e critérios de reconhecimento para ativos, passivos, receitas e despesas como estabelecidos no CPC 00 – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro”

Esclarecendo-se o aspecto do julgamento e da compreensão que o tratamento contábil deve seguir a interpretação dos fatos e circunstâncias (e por que não, evidências disponíveis), voltamos ao ponto de maior julgamento: Como determinar se uma alteração torna um passivo “substancialmente diferente”? No projeto “IBOR Reform and its Effects on Financial Reporting” (aspectos das mudanças das taxas de referência em instrumentos financeiros), o staff do IASB discutiu “como determinar se uma modificação é substancial” na discussão da orientação para modificação e/ou desreconhecimento de um passivo financeiro de acordo com o IFRS 9.

Segundo o staff do IASB, determinar se os termos de um passivo financeiro são substancialmente diferentes do ponto de vista qualitativo depende (assim como discutido acima) de fatos e circunstâncias específicas que se aplicam a cada caso e podem variar de jurisdição, tipos de produtos e acordos, entre outros. Ainda, de acordo com a equipe do IASB, uma modificação considerada substancial seria aquela que resultasse em uma transferência significativa de valor e/ou uma nova avaliação de subscrição/precificação do instrumento financeiro, incluindo os seguintes exemplos: (a) modificações na moeda na qual o instrumento financeiro é denominado; (b) uma extensão significativa da data de vencimento; (c) modificações em um instrumento financeiro de taxa flutuante para que se torne um instrumento financeiro de taxa fixa; e (d) modificações nos fluxos de caixa contratuais que fariam com que um ativo financeiro que passou apenas pela avaliação de pagamentos de principal e juros (SPPI) antes fosse reprovado nessa avaliação por causa das modificações.

Os exemplos citados acima de termos e condições substancialmente diferentes denotam aspectos em minha opinião mais significativos e profundos do que alguns que possam surgir em uma operação de risco sacado (por exemplo, situações em que não há qualquer alteração exceto o receptor do pagamento). Aplicação exagerada e simplificada de uma modificação em um passivo financeiro como sendo tratada de maneira binária ensejando uma reclassificação, em minha opinião traria mais dúvidas do que soluções. Por exemplo, se um único termo é tão significativo, passivos de fornecedores com vencimento alongado, mesmo que no curto prazo, que poderiam estar sujeitos a efeito mais significativo de juros embutidos (por exemplo, ajustados a valor presente), deveriam estar separados de um contas a pagar com vencimento em 30 dias por estarem associados a riscos diferentes? Passivos junto a fornecedores em diferentes países, ou sujeitos a riscos oriundos de ambientes macroeconômicos diversos poderiam estar apresentados na mesma linha? Dívidas sujeitas a covenants (discutidas exaustivamente no IASB em 2022) podem estar apresentadas juntas de dívidas não sujeitas a tais cláusulas? Dívidas indexadas a IPCA, podem ser apresentadas juntas a dívidas indexadas a LIBOR? SONIA? SOFR? A lista poderia se desenrolar aqui indefinitivamente.

Por outro lado, o julgamento do preparador precisa ser razoável. O fato de um julgamento como esse não ser binário não significa que a apresentação separada reclassificada para dívida não seja apropriada. Em vista dos fatos e circunstâncias disponíveis se espera diligência do preparador e apropriada documentação de suas conclusões.

Por exemplo, considere uma operação onde uma entidade defina que o fornecedor é requerido a participar do programa (mais comum em situações nas quais a entidade possui maior relevância e poder de barganha com o fornecedor) e ao fazê-lo a entidade (i) se beneficia de prazos de pagamento alongados pouco alinhados ao que se espera que seja seu ciclo operacional normal em contrapartida ao pagamento de compensação financeira (juros); (ii) é parte contratual do arranjo realizado pela instituição financeira e o fornecedor que efetivará o desconto; (iii) tem seu risco de crédito afetado significativamente junto à instituição financeira pela utilização do programa; e (iv) recebe uma remuneração fixa ou variável pela utilização do programa por seus fornecedores (algo relativamente comum nestes arranjos). É muito pouco razoável considerar que uma operação como essa tenha qualquer característica de um contas a pagar comercial a ser liquidado no ciclo operacional normal da entidade. As modificações nos termos e condições “normais” se comparado a um contas a pagar operacional parecem de fato substanciais.

De maneira diferente, considere uma entidade que cria um programa de risco sacado onde (i) a utilização do programa é uma decisão unilateral do fornecedor, não sendo ela forçada pela entidade (ou seja, o fornecedor pode escolher receber o pagamento no prazo combinado ou antecipar junto à instituição financeira a qualquer momento); (ii) na utilização do programa pelo fornecedor a entidade não possui qualquer alteração em prazo ou montante a ser pago se comparado à transação original; (iii) o programa não afeta (ou afeta de maneira insignificante) o risco de crédito da entidade; e (iv) a entidade não faz jus a qualquer remuneração oriunda do programa.

Ao observar essas duas estruturas, as modificações em relação ao contas a pagar original são igualmente substanciais? A apresentação de ambos na mesma linha das demonstrações financeiras parece apropriada? Em vista da literatura contábil e da minha interpretação, não. Como também comentado pela CVM, “as entidades não devem distorcer a apresentação de uma transação, devendo prevalecer a essência econômica sobre a forma sua legal”. Me parece a mesma linha tratada pela Estrutura Conceitual, também discutida acima: coisas similares devem parecer similares e coisas diferentes devem parecer diferentes.

No que diz respeito à demonstração dos fluxos de caixa, a IAS 7 (CPC 03 (R2), que trata desta demonstração) define atividades operacionais como “as principais atividades geradoras de receita da entidade e outras atividades que não são de investimento e tampouco de financiamento” e atividades de financiamento como “aquelas que resultam em mudanças no tamanho e na composição do capital próprio e no capital de terceiros da entidade”. Com base nessa orientação, me parece apropriado seguir o raciocínio dos julgamentos sobre a apresentação na posição patrimonial e financeira para determinar se deve classificar os fluxos de caixa sob o acordo de risco sacado como fluxos de caixa de atividades operacionais ou fluxos de caixa de atividades de financiamento.

Essa visão é consistente com o que avaliou o IFRIC, que denota a influência da natureza dos passivos que fazem parte do acordo na tomada de decisão. Assim, se a entidade considerar que o passivo relacionado é uma conta a pagar comercial que faz parte do capital de giro utilizado nas principais atividades geradoras de receita da entidade, a entidade apresenta saídas de caixa para liquidar o passivo como decorrente de atividades operacionais em sua demonstração dos fluxos de caixa. Por outro lado, se a entidade considerar que o passivo relacionado não é uma conta a pagar comercial porque o passivo representa empréstimos da entidade, a entidade apresenta saídas de caixa para liquidar o passivo como decorrentes de atividades de financiamento.

Em suma, fica cada vez mais claro o peso da diligência e da aplicação apropriada do julgamento sob a ótica dos fatos e circunstâncias disponíveis para se tomar uma decisão. Em muitas situações as normas e princípios do IFRS são avaliadas de maneira enviesada, levando a certas conclusões inapropriadas e, infelizmente, em certos casos à utilização de brechas para perpetrar fraudes contábeis que danificam todo um mercado de capitais. A natureza principiológica das IFRS é, na minha opinião, um grande benefício que nos permite explorar a representação fidedigna de eventos e transações em contrapartida à sua forma legal, evidenciando efeitos mais claramente econômicos nas demonstrações financeiras. Por outro lado, essa mesma natureza principiológica é abusada em determinadas situações por preparadores que buscam em seu arcabouço “brechas” para temas não normatizados, ao invés de buscar entender o “espírito” das normas para refletir apropriadamente uma transação.

“Digamos que você tem um cachorro, mas precisa é de um pato nas demonstrações financeiras. Felizmente há critérios contábeis específicos indicando o que constitui um pato: patas amarelas, penugem branca, bico laranja. Logo, pega-se o cachorro, pinta suas patas e pelo e cola um bico laranja de plástico. Todos sabiam que era um cachorro e não um pato, mas isso não importa, uma vez que cumpriram as regras para chamar de pato”.

Frase clássica de Bethany McLean, autora do best-seller que discute a derrocada da Enron. Infelizmente, é razoável imaginar que ao discutir risco sacado, tenhamos alguns patos sendo tratados como cachorro por aí.

Fonte: LinkedIn Patrick Matos

 
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