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Passivos de arrendamento (IFRS 16) são dívida? Afetam a alavancagem?

Passivos de arrendamento (IFRS 16) são dívida? Afetam a alavancagem?
05/10/2023
Patrick Matos

Em 1993, a Associação de Gestores de Investimento e Pesquisa (AIMR), órgão representativo dos analistas de investimentos nos Estados Unidos criticou publicamente a metodologia contábil aplicada ao reconhecimento (ou à falta dele) de grande parte dos arrendamentos nos balanços das entidades. Em sua visão, somente os indivíduos com motivações específicas reconheciam os efeitos dos arrendamentos a partir da cuidadosa elaboração de um contrato. Ainda de acordo com eles, a aplicação dos requisitos contábeis era “deliberadamente caprichosa”, diretamente proporcional às oportunidades de manipulação destas regras.

À época estimava-se que os arrendamentos proviam por volta de 13% das necessidades de financiamento de equipamentos em todo o mundo. Em 1994, o volume financeiro de novos arrendamentos aproximava-se de US$400 bilhões por ano (mais da metade somente oriundos de Estados Unidos e Japão, e por volta de US$8 bilhões no mercado brasileiro). Em 2008, quando já se encontrava iniciado o projeto conjunto para tratar do tema entre o IASB e o normatizador norte-americano (FASB), tais montantes anuais já superavam a faixa dos US$640 bilhões (dados do “World Leasing Yearbook”, publicado anualmente).

Nesse contexto, a AIMR não estava sozinha. A ausência das informações de arrendamentos nos balanços era tópico em discussões envolvendo usuários (em especial, analistas de mercado e gestores de fundos) durante os anos 90 e 2000. A ausência destas informações levava estes usuários a estimarem em seus modelos econômicos o efeito dos arrendamentos operacionais na alavancagem financeira e na lucratividade da entidade, mesmo com pouca disponibilidade de informações a este respeito divulgadas pelas entidades que reportam. Feedback frequente destes usuários indicava a necessidade do provimento de informações de maior qualidade sobre estes arranjos que os permitissem melhor compreender as atividades de arrendamento.

Em 1996, um relatório conjunto do IASB (à época IASC), FASB e certas outras comissões contábeis nacionais comentava como a atratividade da opção por arrendamentos operacionais quando comparado ao financiamento de um ativo por meio de dívida passava diretamente pela existência dos efeitos “off-balance”, aqueles não registrados no balanço. Em particular, ainda comentado no relatório, o fato de que os direitos e obrigações assumidos em um arrendamento não levavam ao reconhecimento de ativos e passivos no balanço reduz a alavancagem reportada, aumenta o retorno dos ativos de acordo com as métricas contábeis e provê uma “margem de empréstimo” que protege covenants sobre dívida e permite a emissão de nova dívida sem a necessidade de renegociação dos contratos de dívida existente.

A preponderância dessa visão por parte dos usuários levou o IASB e o FASB a um raro momento de entendimento comum, levando ao início de um projeto conjunto visando a emissão de um normativo convergido que tratasse do reconhecimento destes eventos anteriormente off-balance, sob a perspectiva de responder a três questionamentos principais notados a partir de sua interação com usuários: (i) as demonstrações financeiras não refletem apropriadamente os efeitos dos arrendamentos operacionais; (ii) transações semelhantes vinham sido reconhecidas de maneira diferente; e (iii) as normas vigentes criam oportunidades para que transações estruturadas levem a um eventual reflexo desejado pelas entidades quanto à classificação dos arrendamentos (operacional ou financeiro).

No início de 2009 fora publicado o Discussion Paper pelo IASB indicando as propostas sugeridas e buscando coletar feedback para emissão de um Exposure Draft. O volume de temas críticos a se analisar e a capilaridade dos comentários recebidos fez com que o projeto tenha se tornado um dos mais longos no âmbito na normatização do IASB, incluindo a emissão do Exposure Draft em 2010, revisão desse Exposure Draft em 2013 e, finalmente emissão da norma IFRS 16 (o CPC 06 (R2), no Brasil) em 2015. Esse longo caminho passou ainda pelo desapontamento causado pelo abandono do projeto em conjunto do IASB e FASB, motivado por discordância em relação a determinados tópicos propostos, levando à emissão de normas independentes. Ainda assim, de acordo com eles próprios, mesmo não se atingido 100% de convergência, de maneira igual foram capazes de endereçar o problema da ausência do reconhecimento de arrendamentos operacionais.

Um dos tópicos mais controversos resultantes da aplicação do novo normativo é o tratamento do passivo de arrendamento, novamente em voga recentemente em vista de visões explicitadas no mercado quanto à sua consideração como dívida e parte da alavancagem financeira de uma entidade ou não. Como comentado antes, o aspecto de alavancagem e caracterização de financiamento de tais transações possui raiz histórica nas visões de usuários que levaram ao início das discussões e, em última instância, elaboração da norma.

Durante as discussões junto ao FASB esta categorização (dívida ou passivo comercial) foi objeto de grande foco, como se encontra disposto nos documentos da época. Em que pese o fato de que o passivo de arrendamento é um passivo financeiro (explicitado nas bases para conclusão do Exposure Draft de 2010) o Exposure Draft e, consequentemente a norma, não especificaram a forma na qual a apresentação do passivo deveria ser colocada no balanço. Á época discutia-se os passivos de arrendamento com dois grupos distintos: os arrendamentos “Tipo A”, nos quais uma parcela mais que insignificante do valor dos ativos era consumida durante o arrendamento (tipicamente representado por equipamentos e veículos, de menor vida útil) e os arrendamentos “Tipo B”, nos quais parcela insignificante do valor dos ativos era consumido durante o arrendamento (geralmente representando edificações e ativos semelhantes).

A discussão girava em torno do fato da visão de alguns que o arrendamento de Tipo B poderia ser caracterizado como um passivo operacional com base no seu eventual tratamento no caso de falência da empresa, aproveitando-se de direcionamento pré-existente no US GAAP. Nesse contexto, em certas jurisdições (como nos Estados Unidos) pela lei de falências, arrendamento operacionais são tratados de maneira diferente de arrendamentos financeiros. Nessas jurisdições, ao contrário dos arrendamentos financeiros que se assemelhariam à compra de um ativo, um arrendamento operacional não sobreviveria em cenários de falência, não havendo direito a ser transferido sobre tais ativos. Dessa forma, no tratamento de uma falência, um arrendatário trataria arrendamentos de Tipo A como dívida e arrendamentos de Tipo B como passivos operacionais, semelhantes a obrigações de desmantelamento ou passivos por reestruturação.

Nessa discussão o IASB posicionou-se acerca da dificuldade de avaliar tais casos em todas as jurisdições, que podem possuir leis bastante específicas e divergentes entre si. Embora possa se assumir que em determinados casos arrendamentos de Tipo B poderiam ter características operacionais em certas jurisdições, certamente não se poderia dizer o mesmo em outras jurisdições que permitisse aplicação consistente dos conceitos em uma norma contábil. O FASB por sua vez, decidiu por manter o modelo de passivo de arrendamento operacional e financeiro afetando a classificação no passivo bem como os efeitos decorrentes no resultado. Seguindo caminho diferente, o IASB seguiu a recomendação da equipe do projeto em não prescrever a classificação dos passivos de arrendamento no balanço, sugerindo a aplicação dos conceitos já existentes na IAS 1, Apresentação das Demonstrações Financeiras (o CPC 26 (R1), no Brasil) para chegar a tal conclusão.

No entanto, o caminho escolhido pelo IASB parece claro e consistente com as visões dos usuários por ele consultados. A visão de dívida já havia sido esclarecida pelo IASB para os arrendamentos de Tipo A no Apêndice A do Exposure Draft revisado de 2013, onde especificava que os “gearing ratios” (grupo de métricas financeiras que indicam alavancagem e solvência de uma entidade) seriam afetados, uma vez que “dívida reportada aumentaria [com a adoção da nova norma]”. Em sequência, como comentado nas bases para conclusão do IFRS 16, o IASB discute a forma na qual o feedback sobre “tipos” de passivos de arrendamento foi discutido em seu due process, esclarecendo que o Exposure Draft fora elaborado sob a premissa de que todos os arrendamentos proveem financiamento ao arrendatário, e explica a rejeição a um modelo híbrido alternativo (em grande parte suportado pelo feedback dos usuários – em especial analistas – que concordaram com a visão de que todos os arrendamentos proveem uma forma de financiamento).

O IASB comenta ainda nestas bases para conclusão a forma na qual feedback recebido de usuários que acompanham certas indústrias altamente afetadas (atividade industrial, companhias aéreas, transporte e telecomunicações) indica uma visão quase unânime de que tais arrendamentos criam passivos de natureza de dívida e a sua apresentação em um modelo único de passivo de financiamento e segregadamente no resultado (entre amortização e juros) apresentaria a melhor informação para sua análise e julgamento.

Nessa linha, o IASB descreveu sua conclusão da seguinte maneira:

“(a) um modelo para o arrendatário que apresenta separadamente depreciação e juros para todos os arrendamentos reconhecidos no balanço patrimonial fornece informações que são úteis para a mais ampla gama de usuários de demonstrações financeiras. O IASB chegou a essa conclusão por três razões principais:

(i) a maioria dos usuários consultados pensa que os arrendamentos criam ativos e passivos “semelhantes a dívidas” para um arrendatário. Consequentemente, eles se beneficiam do fato de os arrendatários reconhecerem os juros sobre esses passivos de forma semelhante aos juros sobre outros passivos financeiros, porque isso permite que eles realizem análises de índice significativas. O mesmo se aplica ao reconhecimento da depreciação dos ativos de direito de uso de forma semelhante à depreciação de outros ativos não financeiros, como imobilizado. O modelo é particularmente benéfico para os usuários que dependem de informações relatadas sem fazer ajustes.

(ii) o modelo é fácil de entender – um arrendatário reconhece ativos e passivos financeiros e os correspondentes valores de depreciação e juros.

(iii) o modelo aborda a preocupação de alguns usuários de demonstrações financeiras de que um modelo duplo perpetuaria o risco de estruturação para criar um determinado resultado contábil.

(b) a contabilização de todos os arrendamentos reconhecidos no balanço patrimonial da mesma forma reflete apropriadamente o fato de que todos os arrendamentos resultam na obtenção do direito de uso de um ativo por um arrendatário, independentemente da natureza ou vida remanescente do ativo subjacente; e

(c) um único modelo reduz o custo e a complexidade ao remover a necessidade de classificar os arrendamentos e a necessidade de sistemas que possam lidar com duas abordagens contábeis do arrendatário.”

A referência do IASB ao IAS 1 também traz bases relevantes para se chegar a uma conclusão. O IAS 1 requer, em seu item 54, que a entidade apresente “contas a pagar comerciais e outras” separadamente de outros passivos financeiros, uma vez que estes são suficientemente diferentes em natureza ou função, como complementado pelo item 57 da mesma norma. “Contas a pagar” é por sua vez definido no IAS 37, Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes (o CPC 25, no Brasil) como “passivos a pagar por conta de bens ou serviços fornecidos ou recebidos e que tenham sido faturados ou formalmente acordados com o fornecedor”.

O IAS 1, no item 70, explica que passivos circulantes como contas a pagar são parte do capital circulante usado no ciclo operacional normal da entidade. O IFRIC em discussões envolvendo risco sacado, por exemplo, fez referência a estas definições ao comentar que um passivo financeiro é um “contas a pagar” somente quando representa (a) um passivo por pagamento de bens ou serviços; (b) é formalmente acordado com o fornecedor; e (c) é parte do capital circulante usado no ciclo operacional normal da entidade.

Em que pese os itens (a) e (b) acima poderem ser refletidos em um contrato de arrendamento, ao analisar tais aspectos parece pouco razoável considerar que compromissos de arrendamento, tipicamente de longo prazo possam se considerar parte do capital circulante usado no ciclo operacional da maioria das entidades (geralmente focados na conversão de caixa de suas vendas no curto prazo).

Em sequência, o IAS 1, discute a forma na qual apresentações em separado são importantes quando a natureza de itens for dissimilar. Em seu item 55, o IAS 1 especifica que a entidade deve apresentar contas adicionais (pela desagregação de contas), cabeçalhos e subtotais nos balanços patrimoniais sempre que sejam relevantes para o entendimento da posição financeira e patrimonial da entidade. Em sequência, o item 58 determina que a base de julgamento para tal apresentação separada tome por base a avaliação (i) da natureza e liquidez dos ativos; (ii) da função dos ativos na entidade; e (iii) dos montantes, natureza e prazo dos passivos.

Em suma, ao observar os posicionamentos explícitos do IASB em seus documentos e/ou normas emitidas, parece clara a forma na qual o passivo de arrendamento trazido pelo IFRS 16 é um fator impactante na alavancagem da entidade e na sua apresentação como dívida. Ainda ao se avaliar as referências já realizadas ao IAS 1, parece também pouco razoável considerar que tais passivos sejam contas a pagar comerciais oriundos do ciclo operacional normal da entidade. Por outro lado, pode se considerar que há dissimilaridade suficiente para estes passivos financeiros se comparado a dívida bancária que torne apropriada sua apresentação em linha separada.

Chamo ainda a atenção à seguinte passagem bastante esclarecedora abaixo descrita nas bases para conclusão do Exposure Draft de 2013:

“O IASB também considerou os efeitos que as propostas podem ter sobre covenants de dívida e requisitos de capital regulatório. Se os covenants estiverem vinculados aos valores reconhecidos nas demonstrações financeiras de um arrendatário, algumas entidades podem deixar de cumprir essas cláusulas mediante a adoção dos requisitos propostos e sem alterações nos termos e condições das cláusulas. Além disso, os requisitos propostos podem aumentar a quantidade de ativos ponderados pelo risco e, assim, afetar as necessidades de capital regulatório dos arrendatários que são instituições financeiras.

O IASB concluiu que os requisitos contábeis propostos fornecem uma representação mais fiel das transações de arrendamento. Consequentemente, o IASB espera que sejam feitas alterações em quaisquer requisitos que dependam da contabilização da norma de arrendamentos. O IASB também está ciente de que muitas convenções de dívida definem seus termos e condições independentemente dos requisitos contábeis e, portanto, uma mudança nos requisitos contábeis não afeta as disposições desses acordos. (...)”

A apresentação destes efeitos de maneira diferente em documentos que referenciam, mas não se configuram demonstrações financeiras em IFRS (onde comumente se incluem os “non-GAAP measurements”) é uma discussão apartada, que cabe outra análise e que é geralmente direcionada por órgãos reguladores de mercado. No entanto, ao que compete às IFRS, o passivo de arrendamento é sim uma dívida financeira. Naturalmente, como consequência afeta a alavancagem de uma entidade e impacta covenants financeiros.

Em que pese eventual ausência de direcionamento mais prescritivo nas IFRS, cabe ao preparador a diligência de buscar a compreensão do “espírito” das IFRS em detrimento da identificação de brechas que permitam aplicação diversa dos conceitos contábeis.

Fonte: LinkedIn Patrick Matos

 
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